FUNAMBULISMOS:
a narrativa e as formas de vida tecnológicas
"Le texte est une chose dont il faut se méfier". Alain Robbe-Grillet
"O meu desígnio é acabar com a paz na leitura, acabar com a narrativa". Rui Nunes
"It is easier to tackle the question of subjectivities with attachments than with networks". Bruno Latour
Abstract
A literatura foi, primeiro, orgânica. A escrita tornou-a linear. As formas "simples" de vida chegavam até nós através de narrativas e meta-narrativas. Hoje as formas tecnológicas de vida são demasiado rápidas para a reflexão e demasiado rápidas para a linearidade. O tempo tecnológico leva à indeterminação e ao risco permanente das bifurcações. As formas de vida estão a reconstituir-se com os laços de redes não-lineares. Que acontece à narrativa ameaçada pela não-linearidade, pela discontinuidade e pela descontextualização?
1. A linguagem serve para instituir uma ordem e uma segurança. Para conter a movência das coisas. Para autorizar a experiência. Para esconjurar o medo. Donde a noção de clausura. Donde a noção de "modelo narrativo canónico". Jacques Brès, nas suas obras sobre a narratividade mostra que é antes de mais para se construir uma visão unificada e ascendente do agir que o sujeito conta histórias e assim se constrói uma visão unificada do tempo e do devir. Rui Nunes propõe, a propósito do seu último livro, Rostos , acabar com a narrativa. "Nós não vivemos nenhuma história, vivemos bocados e perdemo-nos entre uns e outros. É talvez por isso que se escrevem histórias: para dar unidade àquilo que a não tem, para integrar o que surge desintegrado, para dar sentido ao que na verdade não tem sentido nenhum". Como pode ser isso? Abrindo a estrutura do texto? Sobrepondo blocos textuais sem continuidade narrativa? Misturar os géneros? Ensaiando continuamente, experimentando o vazio da própria escrita? O romance de Robert Musil O homem sem qualidades é simultaneamente o melhor retrato dum tempo de crise construído sobre as ruínas da filosofia, da religião e das ideologias e pela própria natureza inconclusa, pelo questionamento da vigência do género, o melhor exemplo do que será a literatura do século XXI. O romance aparece aqui como género total, para lá da ficção, da psicanálise, do ensaio, da filosofia, da crítica e da autobiografia. Por alguma razão Musil nem uma só vez é nomeado em O Canon ocidental de Harold Bloom . Também não deixa de ser interessante que Rui Nunes tenha este autor na galeria dos seus autores preferidos, à parte o facto de que a sua escrita nada conter de redentor.
2. É possível contrapor ao dispositivo "potenciométrico" da estrutura, redundante e gasto, um outro dispositivo, orgânico (Augusto Joaquim) . Os textos confrontam-nos com formas de vida próprias, permitindo pelo menos dois pontos de vista distintos: o da vibração e da ponderação - o primeiro transporta a força de coerência do vivo e a sua (trans)figuração, o segundo corresponde à estruturação da mensagem de acordo com padrões comuns, de modo a diminuir a entropia e aumentar a redundância.
3. Forma de vida é um termo associado a Wittgenstein: é o que dois grupos têm de partilhar para que as suas linguagens possam ser mutuamente compreensíveis. Uma forma de vida é um "modo de vida", um modo de fazer coisas. Uma cultura, no sentido antropológico e no sentido mais comum, é uma força de vida. Deve ser por isso que o multiculturalismo, ao promover uma pluralidade de formas de vida, é visto como uma ameaça para "the American way of life". Para Scott Lash, por exemplo, "As formas de vida abarcam simultaneamente formas de vida naturais e biológicas e formas de vida sociais e culturais" . Nunca será demais lembrar que o senso comum é prático e pragmático: reproduz-se colado às trajectórias e às experiências da vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante. "O senso comum é transparente e evidente. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas para isso mesmo é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico (...) aceita o que existe tal como existe . Em semiótica, uma forma de vida existe, segundo J. Fontanille e Cl. Zilberberg, "desde que a praxis enunciativa aparece como intencional, esquematizável e estética, isto é preocupada com um plano da expressão que lhe seja próprio" . Uma forma de vida apreende-se como uma semiótica conotativa: o movimento dos actantes, a reconfiguração das figuras aparecem como típicos duma enunciação literária complexa e como uma operação de deformação coerente do dispositivo literário dominante - "potenciométrico" - convertendo-se o nosso próprio olhar em "forma de vida".
4. Temos assim que "Estrutura e entropia são duas características que exprimem aspectos contraditórios; qualquer linguagem deve equilibrar estes aspectos de modo a conseguir, por um lado, uma entropia elevada ou um conteúdo em informação elevado e, por outro, uma boa estrutura" . À primeira vista, a ideia de dinamitar a narrativa evoca um procedimento mais irónico do que real. "As palavras carregadas de mal" não se sustentam sem uma estrutura elementar simultaneamente narrativa e discursiva. A abertura da estrutura encontra-se já in nuce em Lévy-Strauss, mas ainda sob a forma da gramática transformacional: o conteúdo do mito pode variar indefinidamente, novas conexões podem sempre aparecer de tal forma que a estrutura se torna projecção, tendência, sistema virtual. Porém a sua armadura continua fixa, conservando a sua unidade, o seu centro, a sua clausura formal. O mesmo se passa, grosso modo, com Greimas. No ensaio Raça e História, publicado pela UNESCO em 1952 , Levy - Strauss contesta a necessidade e a linearidade do progresso: "O progresso não é necessário nem contínuo; processa-se por saltos ou, como diriam os biólogos, por mutações. E o resultado desses saltos nem sempre corresponde a ir mais longe na mesma direcção". A metáfora do jogo nulo serve a Lévi-Strauss para dizer que "O que ele (o jogador) ganha com um (dado) está sempre exposto a perder com o outro" e para concluir: "somente de tempos a tempos é que a história é cumulativa".
5. Mas é de facto Derrida quem vai operar o des-centramento da estrutura, já presente em La Voix et le Phénomène. O impensável tem de ser um exterior absoluto em relação à estrutura. A estrutura não tem centro. O centro é uma ficção metafísica. A estrutura tem de ser vista como um jogo infinito de diferenças, diferencialidade. O centro da estrutura está em todo a a parte e em parte nenhuma . O argumento de Derrida arranca de uma leitura renovada de Saussure. As unidades da linguagem não são positividades fixas, mas antes "restances", nós de sentido (os "capitons" de Lacan): sem limites fixos, permitem ao sistema das regras de funcionar mas também de evoluir a cada instante. O saber deixa de ser constituição para passar a ser descoberta e o sistema abre-se. A linguagem é pura "différance" e não uma positividade, excesso de signo em signo. É por isso que a iterabilidade perfeita da linguagem é impossível. O signo é sempre diferente de si mesmo. Nenhum signo é absolutamente transparente, remeterá, através da sua falta de presença, para outros signos, como Peirce, bem antes do neo-estruturalismo, mostrou. O sujeito - de fala ou destinatário - é um sujeito cindido. Derrida rompe completamente com a clausura em que se fechava a filosofia analítica. A chave de fendas desta operação é o conceito de "interpretante" - é a falha que permite o símbolo, impossível num sistema fechado, determinado.
6. No último livro de Rui Nunes, para acabar com a narrativa é preciso acabar com o narrador, com o "agente do mal". A arte do narrador, ligada ao tempo repetitivo e sem fim do artesanato, foi primeiramente abalada, diz-nos Benjamin, pela invenção do romance, porque nenhum romance tem sentido sem a aparição da palavra fim. Mas foi sobretudo um demónio moderno, a era da Informação, que decretou a morte da narração. Barthes opunha ao romance o romanesco; à indiferença e á falta de memória da Informação, o "couteau de la valeur" .
7. O fascínio pelas histórias que não se chega a pôr em ordem é partilhado hoje por muitos escritores. Para Alain Robbe - Grillet , o pai do "nouveau roman", o romance tinha que se desembaraçar da intriga e abolir a motivação psicológica ou sociológica dos personagens, prestando uma atenção aos objectos. É por isso que o autor de O ciúme define este romance como "uma narrativa sem intriga", povoada de "minutos sem dias, janelas sem vidros, uma casa sem mistério, uma paixão sem ninguém". Pôr em ordem os acontecimentos cronológicos duma narrativa não é senão a evidenciação de um trabalho de escrita e do acontecimento (ficcional ou real). O que conta é a ordem realizada do texto que lemos, tal como ele é. É aquilo que Robbe-Grillet mostrava no artigo "Temps et description" de Pour un nouveau roman: Il était absurde de croire que dans le roman La Jalousie (...) existait un ordre des événements, clair et univoque, et qui n'était pas celui des phrases du livre, comme si je m'étais amusé moi-même à brouiller un calendrier préétabli, ainsi qu'on bat un jeu de cartes. Le récit était au contraire fait de telle façon que tout essai de reconstitution d'une chronologie extérieure aboutissait tôt ou tard à une série de contradictions, donc à une impasse. Et cela non pas dans le but stupide de dérouter l'Académie, mais parce que précisément il n'existait pour moi aucun ordre possible en dehors de celui du livre. Celui-ci n'était pas une narration emmêlée d'une anedocte simple extérieur à lui, mais ici encore le déroulement même d'une histoire qui n'avait d'autre réalité que celle du récit, déroulement qui ne s'opérait nulle part ailleurs que dans la tête du narrateur invisible, c'est-à-dire de lécrivain et du lecteur. " Este mesmo autor, que regressa agora com la Reprise, diz-se "fascinado pelas histórias que não se chega a pôr em ordem como ao assassinato de Kennedy" . Há no projecto de escrita de Rui Nunes algo desta paixão do visível ("a escrita para mim é como se fosse uma lupa e um telescópio: desvenda o que é imperceptível e aproxima o que está afastado"), mas que visa a sua desfiguração.
8. Em L'idéologie et l'Utopie, Paul, Ricoeur analisa o conceito de ideologia em três níveis: enquanto distorção, legitimação e integração (Seuil, Paris, 1997). Por contraposição, o discurso utópico visa desafiar, transformar, explorar o possível, distorcendo o "real", o liso do "social", o vazio do "pleno" ideológico. Roland Barthes tinha razão: "Manier une parole littérale (qui est l'une des entreprises les plus difficiles de l'écriture), c'est refuser toutes les hiérarchies, celle de la société parentale et celle de la phrase" . Sem esta dupla cisão não há maturidade nem mundo inqualificável. Nem fulgorização. Dois nomes que ilustram a dupla face da utopia como apocatástase, como abertura e inconclusão: Roberto Musil e Maria Gabriela Llansol. O homem sem qualidades aponta para o romance como género supremo da utopia - o instrumento mais capaz para "assenhorear-se novamente da irrealidade" numa época em que "a realidade não tem sentido". A literatura de M. G. Llansol não se integra de todo na ideologia literária ambiente e ainda menos se integra no "núcleo duro da nossa ficção" . Habita-a uma pulsão de errância, de subversão utópica que desafia os padrões de escrita e as autoridades, que não dissimula. É essa exterioridade (ao poder) que lhe empresta asas. Compreende-se porque é que a questão do sentido não lhe interessa. Por causa do ruído que não permite? Por causa da entropia que promove? Talvez porque, como diz um dos seus mais certeiros intérpretes, "o texto literário não vise, antes de mais, a transmissão de uma informação potencial, mas a inoculação de um potencial de vibração" . Habita-a o desejo de romper a clausura que tudo ordena, codifica, identifica. Toda a sua obra se tece segundo um modelo textual e figural estranho à ficcionalidade e à narratividade (à lógica da personagem). Mas o seu projecto de escrita nada tem de trágico e de destruidor (como é a literatura de Kafka ou de Rui Nunes). O texto llansoliano habita o espaço da ucronia, batido por um vento jubiloso. Corresponde àquilo a que João Barrento chama "o projecto eudemonista da ucronia llansoliana" . É sintomático que a sanha de Fernando Venâncio se mobilize contra autores que, em termos de escrita, se movem numa comum "área de família", e que para ele produzem um tipo de literatura "catastrófica, que vive da degradação da história, das personagens e da linguagem": Maria Velho da Costa, Rui Nunes e Maria Gabriela llansol.
9. Lotman utiliza a imagem da cibernética para mostrar como o poema forma uma totalidade orgânica, complexa. O poema é um organismo, uma maquinaria temporal tensa do começo ao fim. G. Agamben fala mesmo da existência de uma "escatologia interior ao poema" . Nós pensamos ainda os livros como um corpo, curso, inteiro, ligado. Será possível ler Rostos como se lê um livro? Concorrem as partes para o mesmo leito que se extravia aqui, mais além se reencontra e jubilosamente desagua no mar do sentido? Voltemos a Rui Nunes e à sua "estética da decomposição". É preciso acabar com tudo o que se assemelhe vagamente à narrativa, que é artificial, em nome da fragmentação . Como levâ-lo a cabo? Como estilhaçar os "modos" narrativos para tocar o "grau zero" do romance? Como dissolver o "ópio romanesco" que qualquer romance destila? Como destruir a distância se a diegese é inconcebivel fora do fluxo do tempo? Como abolir a urdidura orgânica? Como destruir a narratividade, entendida por este autor como máquina que incide sobre o pormenor, sobre o detalhe? Rui Nunes reconhece que não é fácil "eliminar a idealidade do sentido narrativo". Mas avança uma justificação de peso: "Obedecer à narrativa é uma submissão a uma espécie de ditadura do sentido". É necessário destruir a paisagem que é pacificadora por nos dar a impressão da totalidade e do repouso. Este projecto (subversivo) de escrita: acabar com o romanesco (hipocrisia da felicidade), acabar com a paisagem e com o artifício não é decididamente um projecto moderno. Acabar com a explicação que é sempre exterior à "coisa textual" e à realidade. "Quero que as palavras sejam factos, sejam objectos, não descrevam e não mintam". O romance moderno constitui-se não só sobre a dissolução da narrativa puramente imaginosa do Barroco mas também sobre a desagregação da estética clássica . Rui Nunes abole no mesme lance a narrativa moderna (observação, confissão, análise) e a sua estética. É o toque a finados do romance fechado, orgânico, bem ordenado, com um princípio e um fim; é a porta larga do romance aberto - v.g. o romance picaresco. É claro que os problemas de técnica narrativa acompanham os problemas de semãntica e de visão do mundo.
10. Passemos a um outro autor, emblemático a meu ver no que concerne ao entendimento da escrita: Renaud Camus. É um autor a que vou dar relevo pelo experimentalismo da escrita a que se tem dedicado e pelas questões teóricas que nos interessam no quador deste texto. Falo especiificamente de Ne lisez pas ce livre . O autor confessa como determinados livros seus se debatiam com a dificuldade da narração em leque ou em arborescência. Daí a insatisfação com o carácter unidireccional do livro. É certo que Travers I e Travers II já exploram as possibilidades de níveis sobrepostos de discurso, de figuração espacial da proliferação arborescente do pensamento, da fantasia e da "realidade". Nas Églogues também já se ensaia este procedimento. Mas Vaisseaux brûlés vem resolver essa dificuldade como imagem do ideal feito de cruzamentos perpétuos, ramificações infinitas, notas, parêntesis, notas sobre notas. R. Barthes chamava batmologia à "inversão contínua do por ao contra", ao batimento incessante da doxa e do paradoxo (Barthes, 1975, p. 71), comparando-a , de acordo com Vico, a uma espiral, não a um círculo fechado sobre si mesmo (ibid., p. 92). A batmologia i.é., o jogo dos degraus - coloca-nos perante o facto que o sentido regressa sempre, mas a um outro, nível, não havendo coincidência entre opiniões e palavras que são contudo as mesmas. Exemplos: diz-se "o senhor" às pessoas, "Doutor" aos doutores, mas se se trata de médicos de estatura particular volta-se a "o senhor". É o mesmo e não é porém o mesmo "senhor". São estes níveis de língua e de sentido que figuram nas Églogas ou em P. A., as notas e as notas sobre as notas, a página em estratos infinitos; e agora a possibilidade ilimitada da ligação, no sentido técnico do termo na teia: "Prolonger un livre, ça n'a jamais été pour moi ajouter quelque chose à la fin mais le creuser en son milieu, en abyme: faire du surplace et creuser, cavare, en latin, d'où mon goût pour les cavatines en musique" . R. Barthes que prefacia Tricks escrevia então: "le sujet fait du surplace". Camus explica-se com uma grande inteligência sobre aquilo que o hipertexto permite: "Le problème que pose une phrase, c'est de trouver la possibilité de l'ouvrir, de l'écarter, comme ces masques japonais que montre Barthes, justemente, dans l'Empire des signes. N'importe quel mot est rendu à son statut essentiel de carrefour et peut produire une ouverture à l'infini" . P. A. continha 999 parágrafos. Em Vaisseaux brûlés, versão hipertextual de P. A., só o primeiro parágrafo de P. A., "Ne lisez pas ce livre", viu enxertar-se nele algo como duzentos parágrafos em arborescência que só por si poderiam constituir um livro, o que talvez venha a acontecer. Tanto Renaud Camus como POL têm a intenção de publicar uma espécie de "folhetos" que seriam cada um parágrafos de P. A. e a sua posteridade em pedaços. As Églogues podem ser consideradas textos proféticos na medida em que prefiguram as possibilidades daquilo a que hoje se chama hipertexto. A desconfiança de Camus acerca das estruturas lienares típicas e acerca dos hábitos de leitura é muito mais devastadora do que pode ser realizado pelo hipertexto. A grande lição de P. A., uma obra curiosamente anacrónica na idade da reproductibilidade electrónica, é que nos ensina aquilo que o tipo de hipertextualidade nos está a fazer perder: a necessidade da qualidade da leitura e da escrita, a disciplina que isso implica, mas também a libertação e a liberdade que fornece a quem quer trabalhar, não consumir, compreender mais do que ir na onda.
11. A que género literário pertence este livro? Um género literário caracteriza-se pela correlação sistémica de vários factores, entre os quais se destaca um determinado modo de situação comunicativa (o "radical de apresentação" de Northrop Frye) que conexiona o género com um modo literário (narrativo, lírico e dramático), um determinado modelo de forma do conteúdo (configurado por elementos semânticos e pragmáticos acrónicos e por elementos semânticos e pragmáticos histórico-socias) e um determinado modelo de forma de expressão (que resulta de normas e convenções estilísticas) . O género elegíaco está semântica e pragmaticamente associado à morte de alguém ou á meditação do poeta sobre a natureza precária da vida; a égloga está por sua vez associada á utopia, ao mito da idade de ouro.
12. "Ne lisez pas ce livre!"- este é o primeiro dos 999 parágrafos de P.A. (Petite Annonce), volume publicado nas edições P. O. L em 1997. Depois disso P.A instalou-se na Net, o espaço que mais lhe convinha e mesmo o mais adequado pelo desenho da narrativa e do sentido que não corre de maneira linear, do princípio ao fim, como nos livros comuns. O seu percurso estava cheios de cruzamentos, travessas, perdas, cavernas, abismos - parêntesis no interior dos parêntesis e notas a notas que não acabavam nunca. Nesta transferência de um mundo a outro. P. A. transformou-se em Vaisseaux brûlés, um atelier gigante em expansão permanente em que cada um dos parágrafos da obra inicial, cada uma das frases tem vocação para gerar uma literatura arborescente sem fim à vista.
13. Ne lisez pas ce livre é uma suma virtual, uma verdadeira work in process e a sua publicação em papel prolonga, em última instância as Églogues. Encontramos as mesmas formas de construir o texto que se elabora através de uma série de passagens. Encontramos igualmente a presença das fotografias que são como que janelas para o texto. Lembremos as primeiras linhas de passagem:
"Et de nouveau: "Une table, une fenêtre, une table près d'une fenêtre, et la vue, les vues."
14. As fotografias presentes no livro abrem perspectivas ao texto e permitem passar do legível ao visível. O ser tornou-se essa passagem de um nível de discurso a um outro. Este discurso que é puro aparecer, o aparecer do "dispar'être". O sujeito passará mesmo pelo fetiche e a incarnação em fetiche do outro enquanto sujeito quando Camus esboça um retrato do leitor ideal que seria um puro estereotipo homosexual visível e devidamente notificado através de uma fotografia do género.
15. "L'encre la plus pâle est plus forte que le plus des souvenirs" (Provérbio chinês). A modernidade centrava-se na perdurabilidade do texto e do seu significado verdadeiro. Aquilo que a ciência descobre, já a literatura o pressentira e experimentara. Desde Mallarmé que se sabe que cada obra, em vez de querer tocar a categoria geral do "bem-escrever", deve propor a sua própria língua, o seu próprio sistema, não ao nível das figuras e das imagens - que é o da retórica - mas ao nível das relações essenciais, que é o da língua. Também está em processo. a ideia duma normalidade da linguagem. Nem a urdidura de corpos matematicamente inacabados, nem a ausência de linhas de contorno que dão ao corpo os seus limites e funções, nem a obliteração das conexões narrativas dispensam a esse texto terrível que é Rostos as marcas formais da sua estruturação: "o arcaboiço trinitário repousa no seu centro (o segundo texto) sobre lampejos de formas geométricas básicas a linha, uma curva, rectângulos, que adquirem ocasionalmente a profundidade da perspectiva renascentista" . Há muito que tanto Robbe -Grillet como Robert Coover nos mostraram que a narrativa pode proceder numa ordem aporética criando e destruindo causalidades possíveis ao longo do caminho. Os seus leitores habituaram-se a esperar mais do que linearidades e hierarquias ingénuas.
16. "Parece que o hipertexto torna a categoria da ordem quase inútil com a excepção quase tautológica dos textos acrónicos", escreve Marku Eskelinen . Parece que o hipertexto torna a categoria da ordem quase inútil com a excepção dos textos A literatura electrónica "reflecte" as formas de vida tecnológicas que esse estão a instalar e reflecte o mundo das redes em que se movimenta: imaterial, opaco, ubíquo. sem centro nem periferia e em que ao mesmo tempo tudo é central e periférico. A primeira face da rede concerne a ligação, o fluxo, a velocidade, numa palavra a rede-conexão e a logística que a sustenta. O segundo tem que ver com as comunidades de interesses entre pessoas as mais das vezes distantes. Alimentam-na a interconexão e o interconhecimento. As formas de vida, como "estilos" eram simultaneamente formas de vida tanto biológicas e naturais como sociais e culturais. As formas tecnológicas de vida obedecem a um modelo cibernético e as formas de vida tornam-se formas de vida à distância. Deixam por isso de ser lineares, comprindo-se e descontextualizando-se . A Internet - a sua pulsão anti-comunicativa e anti-narrativa - acabou com a ideia de fim ou de princípio. Acabou sobretudo com a ideia daquilo que entretecia as acções no mundo e que lhe emprestavam uma escatologia. O percurso dum hipertexto é mais exigente do que a leitura de um livro linear porque a questão da pertinência daquilo que é lido é permanentemente posta em causa. Mark Bernstein, a propósito da narrativa na rede escreve: "A Rede está permanentemente dilacerada por duas forças poderosas, aparentemente irresistíveis e irreconciliáveis. Por um lado, a utilização e a engenharia de interface favorecem a simplicidade, a consistência e a clareza, um minimalismo meramente funcional. Por outro lado, os padrões e as tecnologias da rede que estão a surgir alimentam uma eflorescência permanente de novas abordagens ao design da rede. Por um lado, trata-se de uma estrutura hierárquicamente rígida cunhada como Arquitectura de Informação que promete claridade e coerência; por outro lado, essa mesma rigidez parece proporcionar esterilidade e enfado" . Aí estamos. Entre um minimalismo funcional; entre estruturas rígidas que prometem ao mesmo tempo claridade e coerência, mas também esterilidade e aborrecimento. Enquanto as novas tecnologias para o hipertexto e gráficos animados baseados na rede prometem trazer á rede experiências narrativas poderosas, a realidade não é assim tão côr de rosa: continua a ser difícil encontrar narrativas na rede atarentes e os gráficos comerciais animados têm sobretudo que aliar a interacção sofisticada com uma narração sedutora. É verdade que as velhas ideias de "design" se tornaram caducas com esta arremetida; é verdade que os antigos erros parecem ridículos; é verdade que as abordagens anteriores ficam muito ultrapassadas. Mas esta corrida tumultuosa, com claques de ambas as partes, ignora uma terceira força: o poder da narrativa. Objecto perdido?
17. No contexto caótico em que vivemos é cada vez mais difícil descobrir identidades. É verdade que a literatura, desde Kafka e Pessoa, dinamitou a identidade, manifestando a caoticidade das formas de vida, agora sem centro e sem dono. A literatura orgânica vive da atracção do caos, não da ordem, do eu acentrado, não do eu gestor (Augusto Joaquim). Há, aqui e ali alguns pontos de contactos entre a literatura que produzem Rui Nunes e Maria Gabriela Llansol e a literatura electrónica: a deflagração da narrativa, fazer variar a sequência topológica para encontrar outra sequência significante, a passagem do eu gestor (narrador) a um eu acentrado (heteronímico). Mas acabam aqui as semelhanças. Porque aqui não vestígios da natureza energética da vibração. Aqui não há matéria figural no ar, não há corpo orgânico, mas agenciamentos maquínicos cegos que não ligam figuras, mas regimes de frases desconectadas, comandadas por um eu gestor (o leitor, que usurpou o lugar do autor) onde, finalmente, quem ordena o mundo narrativo é o demónio da redundância.
18. A própria literatura sucumbe ao caos cultural da mundialização. Aquilo que a escrita electrónica "conta" não é senão a linguagem das bifurcações, das discontinuidades e das descontextualizações: organizar a estabilidade das relações mais do que a invenção das palavras, ir até à raíz das diferenças imateriais que fundam a linguagem. Que linguagem - a do vazio?
José Augusto Mourão é dominicano, semiólogo, professor na Universidade Nova de Lisboa (DCC)